Elaborações intelectuais que virão a constituir um pensamento social e político e, mais tarde, as ciências sociais no Brasil podem ser delimitadas historicamente na segunda metade do século XIX. Embora haja um certo consenso quanto ao surgimento de obras e autores que pensaram a sociedade brasileira, existem controvérsias sobre seus marcos e momentos decisivos, que definem seu valor sociológico ou seu caráter científico de interpretação social.
Embora avessos ao pretenso compartimento e especialização das ciências sociais em disciplinas particulares, construção claramente frágil, ocupar-nos-emos aqui em especial com a sociologia, devido ao caráter representativo, se não emblemático, que possui no quadro da formação das ciências sociais no Brasil. Até pelo menos os anos de 1960, não havia uma distinção nítida entre a Sociologia e demais ciências sociais, ou, quando havia, era muito tênue; a Sociologia predominava e se sobrepunha à Ciência Política e até mesmo à Antropologia, chegando a confundir-se, muitas vezes, com a Economia Política e a História.
1. Delimitação histórica
Várias foram as tentativas de esboçar um quadro das ciências sociais e ideias sociológicas no Brasil. Em uma das primeiras tentativas de sistematização, Almir de Andrade (1941) projetou um esboço da formação da sociologia brasileira em uma obra interrompida, proposta para mais de um volume e que nunca ultrapassou o primeiro — sobre os primeiros estudos sociais (cronistas, historiadores) desde os primórdios da colônia até o século XVIII. Já Bastide (1947), abordando a sociologia brasileira no contexto de uma “sociologia da América Latina”, embora condene o exercício de simples importação de modelos, demonstra otimismo — sem continuadores — nas possibilidades de desenvolvimento de um pensamento sociológico fecundo e original, lapidado no estudo de temas e problemas próprios.
Os balanços da sociologia no Brasil que emergem nos anos 1950 são frutos de uma disciplina que se institucionalizava, buscava consolidação metodológica e, sobretudo, prestígio e influência — se não prerrogativa — na explicação social do país. Com a criação, nos anos 1930, da Universidade, das faculdades e cursos de Ciências Sociais (na Escola Livre de Sociologia e Política, em 1933; na Universidade de São Paulo, na cidade de São Paulo, e na Universidade do Distrito Federal, no Rio de Janeiro, ambos em 1934), bem como da primeira revista estritamente acadêmica da área (Sociologia, da Escola Livre de Sociologia e Política, por iniciativa de Emilio Willems) afluirá a ideia de que, naqueles anos 1930, está o marco inicial da produção científica, e de que a institucionalização é o processo por excelência do amadurecimento e desenvolvimento das ciências sociais (e da sociologia) no Brasil [1]. Tal avaliação é expressa por Djacir Menezes (1956) e também por Costa Pinto e Edison Carneiro (1955), estes últimos elaboradores de um balanço institucional e temático da produção sociológica brasileira [2]. Compartilha também desse ponto de vista Pinto Ferreira (1958a; 1958b), segundo o qual as ciências sociais tomaram rumo “impressionante” e os estudos sociais adquiriram tom científico e construtivo somente após 1930, dando início à “fase moderna da sociologia brasileira”.
De modo análogo, Fernando de Azevedo (1973, p. 317), em apêndice inicialmente publicado em 1954 à 6ª edição de seu compêndio (publicado originalmente em 1935), analisa a questão da criação da sociologia na América Latina e, particularmente, no Brasil, conferindo-lhe três fases: uma primeira fase, anterior ao ensino e à pesquisa, na qual as obras são “antes literárias e históricas que sociológicas”, estendendo-se da segunda metade do século XIX até 1928; uma segunda fase de introdução do ensino de Sociologia nas escolas do país, de 1928 a 1935; e finalmente, a da associação do ensino e da pesquisa nas atividades universitárias após 1936.
Florestan Fernandes (1958, p. 190), de modo semelhante, segue tal curso ao indicar três épocas de desenvolvimento da reflexão social no Brasil: 1ª) desde o terceiro quartel do século XIX, na qual tal reflexão é usada como recurso parcial de explicação e dependente de outros instrumentos; 2ª) no primeiro quartel do século XX, na qual predomina o uso dessa reflexão como forma de consciência e explicação das condições histórico-sociais de existência; e 3ª) enraizada no segundo quartel do século XX e que só então (nos anos 1950) começa a se configurar plenamente, quando vige a subordinação do labor intelectual aos padrões de trabalho científico sistemático por meio da investigação empírico-indutiva [3]. Afirma que, tanto a “transformação da análise histórico-sociológica em investigação positiva”, como a “introdução da pesquisa de campo como recurso sistemático de trabalho”, poderiam situar “historicamente a fase em que, no Brasil, a Sociologia se torna disciplina propriamente científica” (FERNANDES, 1958, p. 203).
A busca da originalidade e distinção nacional da sociologia brasileira será perseguida por Guerreiro Ramos (1953; 1957; 1958), que, por crer numa anterior existência da sociologia brasileira como saber “em ato”, inicia uma ampla revisão que acabará por permear toda a sua obra; para ele, a existência de uma produção sociológica no Brasil advém dos trabalhos de Tobias Barreto, Silvio Romero, Euclides da Cunha, Alberto Torres, etc. (RAMOS, 1953, p. 11-2). Para dar conta das diferenças qualitativas (e das formas de comprometimento e intervenção na realidade nacional) entre as interpretações anteriores e as (então) atuais, Guerreiro Ramos diferenciava a “sociologia em hábito”, exercida por treinamento específico, por vezes livresco e repetitivo, da “sociologia em ato”, efetivada por meio da capacitação e comprometimento como saber criador e de intervenção. E acrescentava: “sempre houve ciência social no Brasil, entendida como saber em ato” (RAMOS, 1980, p. 540).
A preocupação com a recuperação histórica de nomes e contribuições para a gênese da sociologia no Brasil norteia o trabalho de Antonio Candido (1964), redigido em 1956 e publicado originalmente em 1959. Nele, resgata a produção sociológica desde o final do século XIX até os anos 1950, com acurado senso histórico, sem pretensões de contestação anacrônica das explicações da vida social com base num instrumental posterior e pretensamente científico. Para o autor, dois períodos podem ser definidos nessa evolução: 1º) de 1880 a 1940, quando é praticada por intelectuais não especializados, com um período intermédio de 1930 a 1940, de transição para a especialização por meio do ensino secundário e superior; e 2º) após 1940, com a consolidação e generalização da sociologia como atividade socialmente reconhecida, quadros universitários com formação específica e uma produção regular no campo da teoria, pesquisa e aplicação (CANDIDO, 1964, p. 2107). Também Ianni (1989; 1996; 2004) reconhece a contribuição dos pensadores do século XIX, entretanto, assevera que, até os anos 1930, quando vinga uma sociologia científica no Brasil, a produção sociológica está comprometida com preocupações morais, filosóficas, jurídicas ou programáticas, e pouco comprometida com as exigências lógicas e metodológicas da análise científica (IANNI, 1989, p. 86). Chacon (1977, 2008), por sua vez, localiza a formação das ciências sociais no Brasil a partir da segunda metade do século XIX, concedendo importante papel à Escola de Recife e seus autores.
Já Oracy Nogueira (1981) identifica quatro fases no desenvolvimento das ideias sociológicas no Brasil: 1ª) recepção (1840-1870); 2ª) incorporação de teorias e conceitos aos discursos de políticos e intelectuais (1870-1889); 3ª) transição, com o advento das primeiras pesquisas empíricas, ensino e presença de autodidatas; 4ª) consolidação, com os primeiros cursos e especialistas no assunto em nível universitário (1930 em diante), subdividida em duas subfases: 4a) formação da comunidade dos sociólogos (1930-1964) e 4b) predomínio dos sociólogos com formação sistemática (1964 em diante).
Elide Rugai Bastos (1998, p. 146), incorporando a noção de sistema utilizado por Antonio Cândido para explicar a formação da literatura brasileira, localiza o início do processo de institucionalização da sociologia nos anos 1930, com a obra Casa grande e senzala, de Gilberto Freyre, que representaria “um ponto de inflexão, o fechamento de um ciclo: marca o momento em que a teoria social deixa de se apresentar como manifestação dispersa e surge como um sistema: a sociologia”. Esse fato ilustraria “o abandono do discurso jurídico” e a “incorporação do discurso sociológico”, de forma que a “metamorfose do jurídico ao sociológico é o componente fundamental do processo de institucionalização das Ciências Sociais no Brasil [...]”. Já Renato Ortiz (2002, p. 182-3) delimita esse processo na emergência da geração de sociólogos uspianos na década de 1940, quando a sociologia emerge como “ciência”, ou no momento em que o trabalho intelectual passa a ser pautado por premissas que Florestan Fernandes define como “normas, valores e ideais do saber científico”. Isso teria significado “uma ruptura em relação ao senso comum, o discurso dos juristas, jornalistas e críticos literários” por um lado, e, por outro, “um distanciamento em relação à aplicação imediata do método sociológico para a resolução dos problemas sociais: uma crítica de sua utilidade”. Autores mais recentes também se ocuparam da periodização da sociologia no Brasil (LIEDKE FILHO, 2005) [4], do estudo dos primeiros manuais de ensino aqui produzidos quando da institucionalização da sociologia (MEUCCI, 2000), de debates intelectuais relevantes (GUANABARA, 1992) e da disputa pelos rumos da sociologia (BARIANI, 2003). Trabalhos de maior envergadura têm sido feitos nos últimos trinta anos, mas, ainda assim, a temática da periodização da sociologia no Brasil tem sido posta em segundo plano, sendo valorizada a abordagem ideológica — em termos de método — de autores significativos (SANTOS, 1978) e a pesquisa dos fundamentos sociais da produção sociológica, ao modo de uma “sociologia da sociologia” (IANNI, 1989, 2004) [5].
Uma iniciativa de vulto foi a organização de uma História das ciências sociais no Brasil (MICELI, 1989a; 1995), que reuniu diversos autores na abordagem de aspectos relacionados à constituição e institucionalização das ciências sociais (e, logo, da sociologia) no país. O amplo painel ilumina várias particularidades da vida acadêmica e das circunstâncias de produção intelectual, empreende uma sociologia da ciência, das instituições, dos intelectuais e até da clientela, mas não se detém na gênese, na sistematização, na articulação e no desenvolvimento histórico das ideias sociais e seus respectivos autores. Todavia, tal iniciativa coroou o predomínio das interpretações a respeito do desenvolvimento das ciências sociais no Brasil a partir de seu processo de institucionalização. Assim, segundo Miceli, entre 1930 e 1964, “o desenvolvimento institucional e intelectual das Ciências Sociais no Brasil esteve estreitamente vinculado aos avanços da organização universitária e à disponibilidade de recursos governamentais para a criação de centros independentes de reflexão e investigação” (MICELI, 1985b, p. 12).
Em meio às disputas quanto à origem e evolução das ciências sociais no Brasil, as interpretações baseadas na institucionalização como fator preponderante em seu desenvolvimento tornaram-se hegemônicas. A despeito das diferenças (mais de grau que de modo) e do gradiente de intensidade do processo na caracterização dos vários autores, a institucionalização tornou-se não apenas marco do nascimento das ciências sociais no Brasil, mas também chave explicativa e, no limite, critério de valorização e até mesmo de legitimação das interpretações sociais. Outrossim, o que estaria implicado na ideia de institucionalização, malgrado suas diversas formulações?
Institucionalização
As interpretações que consideram a institucionalização como marco inicial ou ponto de mutação das ciências sociais no Brasil, em geral, compreendem alguns elementos comuns ou frequentes que, para efeito de análise, consideraremos como uma construção conceitual tipológica. Desse modo, consideramos a presença de parte ou da totalidade dos elementos mencionados, em concepções aproximadas, convergentes ou relativa e pouco significativamente distintas sobre a institucionalização, acentuando unilateralmente algumas de suas características no sentido de conferir certa coesão ao objeto. Tais elementos compreendem uma noção da sociologia como ciência empírico-indutiva, no rigor metodológico e um elevado padrão de trabalho científico, o distanciamento em relação a valores, a integração entre ensino e pesquisa, o funcionamento regular de formas de pós-graduação, financiamento à pesquisa, divisão do trabalho, quantidade e estabilidade da atuação, mormente em regime integral numa comunidade marcada pelo ethos acadêmico e por meios próprios de hierarquização, legitimação e divulgação/controle da produção [6].
Nos trabalhos precursores dessa interpretação, há alguma preocupação em atar ou relacionar (e raramente explicar) a criação da ciência social por meio de um processo de construção que contemplasse os estágios ou conquistas anteriores. Entretanto, nas formulações desse tipo mais recentes, faz-se praticamente tabula rasa do passado: relega-se o processo de formação das ciências sociais e sua criação é quase um ato de demiurgia. Um corte abrupto, em geral localizado nos anos 1930, mais especificamente nos anos 1950, separa o período anterior (definido como ensaístico) do período posterior, marcado pelo advento da ciência.
Wanderley Guilherme dos Santos (1967, p. 185-6) chama a atenção para o critério utilizado por Florestan Fernandes, Fernando de Azevedo e Djacir Menezes para periodizar a história do pensamento político-social brasileiro, segundo as etapas de institucionalização científico-social, como divisores entre os períodos pré-científico e científico da produção intelectual no Brasil. O período científico das Ciências Sociais teria início “com a criação de cursos superiores, importação de professores estrangeiros e a introdução das técnicas de investigação de campo”. Acontecimentos verificados no segundo quartel do século XX. Até esse momento “produziram-se ensaios sobre temas sociais, a partir de então produziu-se ciência”. Nessa perspectiva, “qualquer que tenha sido a quantidade ou qualidade da produção do primeiro período ela é irrelevante para o progresso da ciência...”. Obviamente que nesses critérios não caberiam autores e obras elaboradas no período denominado pré-científico, como também aquelas produzidas no período pós-1930, por autores como: Oliveira Vianna, Gilberto Freyre, Caio Prado Jr., Sérgio Buarque de Holanda, Victor Nunes Leal, Raymundo Faoro, Nelson Werneck Sodré, Celso Furtado, Jacob Gorender, Hermes Lima, Hélio Jaguaribe, Guerreiro Ramos, Álvaro Vieira Pinto, Otto Maria Carpeaux, José Honório Rodrigues, Afonso Arinos, Josué de Castro, M. Cavalcanti Proença, Anatol Rosenfeld, só para citar alguns.
Tal ciência social obtém estatuto científico a partir de sua caracterização como fundada em bases empíricas e indutivas, uma vez que a produção anterior estaria baseada no dedutivismo gerado pelos grandes traços do “caráter nacional” (LEITE, 1969), relegando os fatos, sua coleta e articulação. Os “ensaístas”, “explicadores” do Brasil (MOTA, 1980), primariam pela atitude de lassidão metodológica e pela falta de um rigoroso “padrão do trabalho científico” (FERNANDES, 1958), aproximando-se mais da literatura, da filosofia social e da justificação política que das exigências da ciência. Daí a ânsia de um distanciamento com relação aos valores (sociais, políticos, culturais etc.) e até mesmo a pretensão de erigir a própria ciência em valor universal.
Há ainda uma corrente importante — provavelmente hegemônica nas últimas décadas — que estabelece como marco histórico das ciências sociais no Brasil o período imediatamente posterior a 1964. “O corte que lhes interessa não é mais a diferença entre conhecimento acadêmico e senso comum [...] mas o processo de profissionalização e institucionalização das disciplinas” (ORTIZ, 2002, p. 186). Essa inflexão teria ocorrido devido a diversos fatores: apoio financeiro governamental, multiplicação dos programas de pós-graduação, criação de novos cursos e departamentos, criação de associações científicas e profissionais, políticas de financiamento à pesquisa por organismos públicos e privados (Finep, Capes, CNPq, Fapesp, Fundação Ford, entre outras), treinamento de pesquisadores no exterior, especialização, “ênfase na pesquisa empírica e na formação de uma rede institucional”, realce no treinamento “em detrimento de um sentido mais clássico da educação” (Velho, 1983, p. 246 s.), etc. Alguns autores, como Bolívar Lamounier (apud VELHO, 1983, p. 247), chegam mesmo a afirmar que isso significou o trânsito “de um modelo burocrático-mandarinístico para um pluralista e flexível”. Estavam sendo criados grupos de profissionais das ciências sociais, especializados em determinados objetos e localizados em subcampos específicos, que procuravam se diferenciar da tradicional intelligentsia (VELHO, 1983, p. 252-4).
A clássica produção de livros e ensaios vai sendo substituída por relatórios de pesquisa e papers; o conhecimento passa a ser medido por indicadores quantitativos, pelo ranqueamento, pela competitividade, pelo utilitarismo de valor instrumental.
Desenvolve-se a sociologia como técnica de controle, organização, produção, perdendo-se de vista a historicidade do social [...] Um coroamento desse processo é a entrada do sociólogo, assim como de outros cientistas sociais, no círculo das decisões governamentais, como policy-makers (IANNI, 1986, p. 36).
Além da parcelização dos temas e das pesquisas, os cientistas sociais passaram a ser dependentes dos órgãos financiadores, que, muitas vezes, definem os problemas, os parâmetros e as abordagens dos trabalhos: “As fundações e instituições estrangeiras que financiam pesquisa dizem à sua clientela brasileira quais são os temas que lhes interessam” (REIS, 1997, p. 14).
Tais pretensões levaram à supervalorização do especialista, da técnica e do treinamento, bem como a um determinado modo de organização em termos de pesquisa, ensino e disposição de recursos humanos (hierarquia, titulação, mérito, seleção e arregimentação de pessoal, organização e coordenação do trabalho de pesquisa e docência, etc.) e materiais (formas de financiamento e disposição de verbas, edição de livros e revistas etc.), o que proporcionaria uma divisão e hierarquização do trabalho intelectual, a criação de um sistema de mérito e acesso a cargos, e volume e regularidade da produção científica. O cientista profissional domina a cena, relegando o bacharel, o autodidata e o outsider (institucional ou não) ao terreno da literatura e da propaganda, do ensaísmo, do impressionismo.
Uma vez que a técnica e o treino não seriam suficientes para legitimar socialmente o trabalho científico, a formação de uma comunidade científica, pautada por um ethos acadêmico, serviu de lastro às pretensões de habilitação e autonomia da atuação dos especialistas, resguardada pela condição particularíssima de domínio e monopólio de um código e treino particular, que lhes legava a prerrogativa (tornada exclusividade) de julgamento pelos próprios pares. Assim, a ciência social, na universidade, ficaria imune às pressões político-sociais, constituindo um ambiente asséptico necessário para o ótimo desenvolvimento de suas funções. A qualidade da produção adviria do escalonamento, setorialização e recorte dos estudos, formando painéis a partir de fenômenos particulares. Grandes quadros explicativos da realidade brasileira representariam um recuo metodológico [7].
A superação do diletantismo, a profissionalização, o controle institucional, formas mais acuradas de investigação e organização da produção foram, sem dúvida, avanços inquestionáveis na construção das ciências sociais no Brasil, e as interpretações dessa construção ancoradas na ideia de institucionalização souberam reconhecer tais conquistas. Todavia, ao cristalizar-se como interpretação dominante sobre a criação das ciências sociais no Brasil, a institucionalização não só legitimou a produção calcada nesses moldes como também estendeu suas influências às formas de legitimação, de divulgação/controle e de financiamento da produção, marginalizando as interpretações que não obedecem aos ditames do status quo e suas concepções de ciência social.
Por ironia da história, esse novo padrão, a partir dos anos 1970, volta-se contra os precursores e pioneiros da institucionalização, mormente contra Florestan Fernandes e a escola uspiana. É o que se pode ler em Otávio Guilherme Velho:
O ponto focal — “totêmico” — da nova organização parece ter-se centrado em torno da ideia de pesquisa. É isso que distinguiria a atividade científica dos palpites do senso comum, do beletrismo dos literatos e do ensaísmo dos intelectuais diletantes e/ou puramente teoréticos. Se isso demonstra que a construção da nova identidade se dava em oposição também a outros grupos, extrauniversitários, demonstra igualmente que apesar das profissões de fé do grupo de Florestan a favor da pesquisa, avaliados pela “geração pós-64” a partir de sua prática são, para esse efeito, jogados no campo oposto. Julga-se que os seus esforços de pesquisa foram basicamente mal-sucedidos, precedidos por longas e herméticas considerações teórico-metodológicas com que se distanciaram do empirismo e do marxismo partidário (outro referencial), mas que na verdade já antecipariam os seus resultados (VELHO, 1983, p. 249).
E em Maria Cecília Spina Forjaz:
Assim como no passado a escola paulista invocara para si padrões de análise científica para marcar a sua diferença em relação ao estilo ensaísta, militante e “ideológico” do Iseb, a partir de meados dos anos 1960 são os mineiros e cariocas que invocam novos padrões científicos para se distanciar do estilo uspiano, calcado frequentemente em longos ensaios histórico-conceituais e carentes de embasamento empírico e formalizações lógico-matemáticas, que os novos politicólogos tentam introduzir apoiados na Ciência Política norte-americana (FORJAZ, 1997).
Vale a pena, ainda, citar um outro intelectual ,o qual exprime suas indagações sobre os rumos que essa nova institucionalização foi adquirindo:
Preocupante, sem dúvida, é a possibilidade de sua perversão corporativa em torno de pequenos objetos — tendência que está contida subliminarmente nos processos de institucionalização da ciência de hoje —, traduzidos em especialização a serviço das carreiras profissionais dos seus praticantes e das redes de especialistas, nacionais e internacionais, que venham a estabelecer, vindo a girar no vazio e sem designação social alguma – uma comunidade de cientistas que se aplicaria em extrair recursos das políticas públicas para a sua auto-reprodução, encerrada em si mesma e destituindo as Ciências Sociais da sua relevância, não apenas social, mas também científica, em virtude de condenar o processo de conhecimento à particularização e à fragmentação (VIANNA, 1997, p. 212).
Frente aos desafios da nova institucionalização, os precursores e pioneiros voltaram-se para a valorização de antigas formas de elaboração intelectual consideradas superadas, ou seja, o “ensaísmo”, a produção engajada ou “ideológica” e formas “literárias\'” de interpretação social. Na nova situação, voltam a valorizar a imaginação sociológica, o artesanato intelectual, a forma do ensaio, a intervenção política etc. Nesse sentido, vale lembrar casos extremos como o de Florestan Fernandes (1978, p. 7) que, num ensaio sobre Lenin, recorre ao marxismo-leninismo como referencial teórico. Octávio Ianni, estudioso da mesma linhagem, afirma: “Penso que certos elementos da realidade brasileira ressoam de maneira mais forte, mais verossímil e mais convincente num livro de ficção do que em alguns trabalhos de sociólogos” (IANNI, 1998, p. 198).
Assim, tais formas de explicação da criação e do desenvolvimento, da cientificidade e da legitimação das ciências sociais tornaram-se também critérios de valoração, instrumento de marginalização e até de inviabilização da produção que não se norteia somente pelo apelo cientificista e institucional, mas que ainda é zelosa da amplitude de visão e da importância do artesanato intelectual na interpretação social. Se é certo que a institucionalização foi um passo decisivo na racionalização dos processos de produção das ciências sociais, igualmente, é óbvio que a técnica, o rigor metodológico e o zelo da racionalidade científica, por si sós, não prescindem da imaginação sociológica para a interpretação social (MILLS, 1975), pois o estrito cumprimento das normas da ciência não é incompatível com a criatividade (FEYERABEND, 2007), e tampouco suficiente para o entendimento da realidade social (NISBET, 1976).
Assim, está posta a tarefa de rever as explicações sobre a criação das ciências sociais no Brasil, problematizando a concepção cientificista e institucional, e retomando a investigação da gênese do processo histórico de sua criação.
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José Antonio Segatto é professor titular da Faculdade de Ciências e Letras da Universidade Estadual Paulista – Unesp/Araraquara-SP. Edison Bariani é doutor em Sociologia pela Universidade Estadual Paulista – Unesp/Araraquara-SP.
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Notas
[1] Apesar disso, o ensino da Sociologia nas faculdades de direito já havia sido proposto por Rui Barbosa (1879) e no ensino regular por Rocha Vaz (1925). Já eram ministradas aulas desde 1912 por Soriano de Albuquerque, na Faculdade de Direito do Ceará, e a disciplina já havia sido introduzida, em 1928, como cadeira no Colégio Pedro II, na cidade do Rio de Janeiro (a cargo de Delgado de Carvalho), na Escola Normal de Recife (a cargo de Gilberto Freyre) e do Distrito Federal (com Fernando de Azevedo). Naqueles anos, 1950, ocorrem no Brasil as primeiras reuniões de organizações de classe: em 1953, o II Congresso Latino-Americano de Sociologia, e, em 1954, o I Congresso Brasileiro de Sociologia, realizado na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo e promovido pela Sociedade Brasileira de Sociologia, fundada em 1948.
[2] O estudo de Costa Pinto e Edison Carneiro (1955) foi realizado sob o patrocínio da Capes (então chamada Campanha Nacional de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior). A preocupação temática também está em Carneiro Leão (1957).
[3] Mais tarde, Fernandes (1977) volta ao tema e — de modo amargo — faz um balanço de sua trajetória e da de sua geração intelectual, que nomeou “geração perdida”, devido ao fracasso em instrumentalizar o saber em benefício da transformação social de cunho popular.
[4] Segundo o autor, a sociologia no Brasil (e na América Latina) divide-se em duas grandes etapas subdivididas por períodos: a etapa da herança histórico-cultural da sociologia, compreendendo o período dos pensadores sociais e o período da sociologia de cátedra; e a etapa contemporânea da sociologia, formada pelo período da sociologia científica, pelo período de crise e diversificação e pelo período de busca de uma nova identidade. A sociologia científica teria início após os anos 1930 e seu apogeu dar-se-ia por volta do final dos anos 1950, por meio de sua institucionalização e da tentativa de relacionar ensino e pesquisa (LIEDKE FILHO, 2005).
[5] Extensivo levantamento bibliográfico — orientado para a política e que contempla também a sociologia — foi produzido por Wanderley Guilherme dos Santos (2002) e uma bibliografia do pensamento social brasileiro está em Aguiar (2000); de modo condensado, uma bibliografia básica do estudo de temas da produção sociológica brasileira está em Miceli (1999).
[6] Segundo tais delineamentos, a forma mais apurada e modelo dessa ciência social seria a desenvolvida em São Paulo, ao ponto de um autor manifestar-se do seguinte modo: “A Ciência Social enquanto tal constituiu uma ambição e um feito paulista, podendo-se associar tal orientação acadêmica a uma postura de neutralidade doutrinária em relação à política prática e de certa distância dos círculos e instituições onde estava se dando o treinamento efetivo dos futuros profissionais da política em São Paulo” (MICELI, 1985b, p. 15).
[7] A disputa em torno da relevância e predomínio de trabalhos monográficos em vez de interpretações totalizadoras já está inscrita na polêmica entre Florestan Fernandes e Guerreiro Ramos nos anos 1950 (BARIANI, 2005).
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